segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

"Mandume"

Eles querem que alguém 
Que vem de onde nóis vem
Seja mais humilde, baixe a cabeça
Nunca revide, finja que esqueceu a coisa toda 
Mandume,Emicida.

Após conhecer essa música há dois meses no dia do meu aniversário não para de martelar minha cabeça. Emicida e outros rappers se inspiram no símbolo de resistência africana Mandume Ya Ndemufayo para falar da resistência negra no Brasil.
Para quem não conhece e talvez nunca tenha ouvido, Rei Mandume foi o último líder cuanhama entre o sul da Angola e o norte da Namíbia, o que durante o Neocolonialismo se chamava Sudoeste Africano Alemão. Mandume foi escolarizado por missionários protestantes, mas morreu ao resistir ao avanço de Portugal e da Alemanha em seu território. E, por dar a sua vida pela defesa de sua cultura e suas origens, ele morreu em 1917 e é reverenciado nesse rap interpretado por Emicida, Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin.
O primeiro a cantar é a rapper  Drik Barbosa que fala com peso sobre o Feminismo Negro. A primeira é a presença da personagem fictícia Tempestade de X-MEN, mas ela passa pela objetificação representada pela Globeleza. Felizmente, ela toca na ferida sobre a tragédia abominável que resultou na morte da moradora de uma favela na Zona Norte do Rio de Janeiro que foi arrastada por 350 metros por um carro da PM em 2014. Isso ainda ajuda a ratificar a potência que tem uma jovem que passou para Medicina em 1º lugar na USP, sendo negra e da periferia A casa-grande surta quando a a senzala vira médica.
Na parte seguinte, o rapper Amiri mencionar apropriação, ele apropriação cultural que posteriormente Muzzike vai abordar com mais agressividade. Além desse tema, ele busca mostrar as heranças históricas do povo negro através de nomes com Zumbi, Sundiata Keita (fundador do Império Mali), o próprio Mandume e a figura de um alimamo, um líder espiritual do grupo étnico Mandinga, associado ao hino da África do Sul (Nkosi Sikelel, mano).
Mandume não poderia fugir da violência urbana que assola a periferia e o jovem negro, principalmente. Rico Dalasam afirma que os mortos não serão trazidos de volta ao citar esses três jovens no começo da sua parte (Não trarão de volta Yan, Gambá e Rigue). Eu não sei se esse Gambá citado é o dançarino do passinho que foi assassinado por espancamento e asfixia por policiais durante uma perseguição em 2012, mas é mais um exemplo da falta de perícia de muitos PM's. A população brasileira não pode esquecer que os negros não param de ser vítima desde os tempos da escravidão. No mapa da violência de 2012, entre 2002 e 2010, 65,1% dos homicídios foram de pessoas negras, enquanto dos jovens mortos 69,1% pertencia à raça. Entre 2009 e 2011, em SP, 61% dos mortos por policiais era negro e, desses, 57% era homens de menos de 24 anos. O que mostra que a briga também é "resistir nesse campo de fardas".
Voltando à apropriação cultural, Muzzike não tem papas na língua para falar sobre a hipocrisia que acompanha o gesto. Não é usar itens da cultura negra que te faz não ser racista. O rap pode passar pelo branco rico sem trazer nenhuma reflexão que importe, um rap (La Revolução Tucana, hip hop reaça) não pode ser vazio. Esse rap não vai fazer de nenhum branco mais negro, ou nenhum rico mais "periférico". Vou deixar um vídeo sobre apropriação cultural aqui para você entender melhor. Talvez  eu mesmo escrevendo esse post possa nunca sentir o que essa música inteira representa, talvez eu entendo a letra, mas a força que isso tem dentro de um negro ou de alguém da periferia, não.
A afirmação de muitos negros passa pela religião iorubá que Raphão Alaafin vai defender. Ele "volta" no tempo para impedir a chegada dos Navios Negreiros. Desde que os negros chegaram em solo brasileiro a cultura ocidental cristã foi empurrada, afinal o Cristianismo tem 2,2 bi de fiéis no mundo não é à toa. Alaafin termina dizendo que as pessoas têm noções diferentes de um bom lugar. Enquanto alguns buscam Lisboa, a cidade reconhecida pela exploração no passado, o rapper busca conhecer Omonguá, lugar onde morreu o Rei que dá nome à música. Fica a reflexão.
Quem termina que vai falar do sucesso da música negra. O rapper vai mostrar as suas influências e com o rap se institui na atualidade, citando Lupicínio Rodrigues, Wilson Simonal, a figura do Zé do Caroço e do bairro de Nova Iorque Harlem. Mas não finaliza sem criticar criticar a falta de representatividade do negro no cinema e nas outras mídias.
O clipe do Laboratório Fantasma não acaba antes de dar uma espetada na Educação que não reflete sobre a posição dos negros na História da Civilização e foca-se no ensino sobre fatos europeus sem levar em consideração que nós temos a maior civilização negra fora da África (85.783.143 negros). Segue os versos:

É mais do que fazer barulho e ver retomar o que é nosso por direito
Por eles continuávamos mudos, quem dirá fazer história por livro feito
Entenda que descendemos de África e temos como legado ressaltar a diáspora de um povo oprimido
Queremos mais que reparação histórica, ver os nossos em evidência e isso não é um pedido
Chega de tanta didática, a vida é muito vasta para gastar o nosso tempo ensinando o que já deviam ter aprendido
Porque mais do que um beat pesado é fazer ecoar na sua mente o legado de Mandume
E no que depender da minha geração, parça, não mais passarão impunes.

Esse tipo de post é uma novidade que tentei trazer para o blog. Eu fiz umas pesquisas para interpretar uma música que eu gostei e achei um grito de representação, mas talvez eu nunca vá saber o que esse rap quer dizer pra quem vive essa luta com frequência.
Não lançar luz ao problema só piora. Então quem se depara com situações de preconceito velado e enraizado, problematize. Eu torço para que ninguém se cale.
Até segunda!

8 comentários: